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Embaixador José Viegas Filho – A Situação dos Militares na Reforma da Previdência

  • Publicado em 13/09/2016 - 17:30
  • Atualizado em 19/04/2019 - 18:25
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O referido artigo foi publicado pelo Embaixador José Viegas Filho no ano de 2003 e utilizado pelo mesmo, quando no exercício da função de Ministro da Defesa, para esclarecimentos à Comissão Mista Especial do Congresso Nacional para reforma da previdência do ano de 2003. A veracidade e o brilhantismo dos argumentos apresentados foram de essencial importância para que os militares não fossem inclusos equivocadamente nessa reforma.

A Situação dos Militares na Reforma da Previdência

Embaixador José Viegas Filho – Ministro da Defesa no período 2003 a 2004.

        O Ministério da Defesa, em razão da sua estrutura, que compreende os Comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, é um interlocutor significativo nessa discussão, não só pelo expressivo número dos seus servidores, ativos e inativos, mas, principalmente, por ser o canal de expressão das expectativas e dos anseios dos militares, que não podem ter sindicatos nem participar do debate político e partidário. Desse modo, a cadeia de comando militar é a via natural e legal, em que fluem os interesses e demandas de mais de dois milhões e meio de pessoas, que, de alguma maneira, integram a família militar.

Portanto, é também investido desse papel que abordo esse tema, procurando oferecer à reflexão dados e peculiaridades nem sempre conhecidos pela maioria das pessoas.

Com o objetivo de trazer alguns subsídios ao debate do tema, abordarei, a seguir, aspectos relativos ao ofício do militar.

A profissão militar tem revelado, ao longo da história da humanidade, características de marcante singularidade, na razão em que os países sempre perceberam em suas Forças Armadas o elemento final - a ultima ratio - para a preservação de seus interesses vitais.

A existência e o futuro das nações dependem, fundamentalmente, da capacidade de suas Forças Armadas de sustentarem ou respaldarem as decisões estratégicas do Estado, bem como de atuarem para a garantia da soberania, com a preservação da integridade territorial, do patrimônio e dos interesses nacionais.

Recursos humanos altamente qualificados, treinados, motivados, bem equipados e integralmente dedicados à atividade militar são o fundamento da capacitação das Forças Armadas, refletindo o desejo da própria sociedade.

Daí decorrem as especificidades da profissão militar, cujo reconhecimento é universal. Muitas vezes, essas especificidades incidem na limitação de direitos para o cidadão-militar.

Algumas dessas limitações constam do § 3º do art. 142 da Constituição Federal, das quais ressalto as seguintes:

  • a proibição de sindicalização e de greve para os militares, o que abrange os da ativa, os da reserva e os reformados;

  • a proibição de o militar da ativa filiar-se a partidos políticos.

Outras características da profissão militar, contidas no Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980), regulamentos e normas vigentes nas Forças ou consuetudinárias, corroboram plenamente a especificidade profissional, tais como as a seguir discriminadas.

Risco de vida

Durante toda sua carreira, o militar convive com o risco. Seja nos treinamentos, seja na sua vida diária ou na guerra, a possibilidade iminente de um dano físico ou da morte é um fato permanente de sua profissão.

O exercício da atividade militar, por natureza, impõe o comprometimento da própria vida.

Sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia

Ao longo de toda a sua carreira, o militar tem de obedecer a severas normas disciplinares e a estritos princípios hierárquicos, que condicionam toda a sua vida pessoal e profissional.

Disponibilidade permanente

O militar se mantém disponível para o serviço nas 24 horas do dia e ao longo de toda a sua vida profissional.

Restrições a direitos sociais

O militar não usufrui alguns direitos sociais, de caráter universal, que são assegurados aos trabalhadores, dentre os quais incluem-se:

  • remuneração do trabalho noturno superior a do trabalho diurno;

  • jornada de trabalho diário limitada a oito horas;

  • obrigatoriedade de repouso semanal remunerado; e

  • remuneração de serviço extraordinário, devido a trabalho diário superior a oito horas diárias.

Mobilidade Geográfica

O militar pode ser movimentado em qualquer momento, para qualquer região do país, indo residir, em alguns locais inóspitos e destituídos de infraestrutura de apoio.

Consequências para as Famílias

As exigências da profissão não ficam restritas à pessoa do militar, mas afetam também a sua família.

Vínculo com a Profissão

Mesmo quando na inatividade, o militar permanece vinculado à sua profissão. Nessa situação, o militar é classificado em dois segmentos bem distintos – a reserva e a reforma.

Os militares na reserva estão sujeitos a leis militares, em especial ao Estatuto dos Militares e ao Regulamento Disciplinar, podendo ser mobilizados a qualquer momento.

Esse elenco de especificidades, inerentes à profissão, enforma o aparato legal que regula as diferentes situações e relações do militar no Estado.

Portanto, quando abordamos o tema da remuneração dos militares na inatividade, não podemos deixar de considerar as peculiaridades do ofício do militar, que anteriormente foram analisadas. Mas, preliminarmente, gostaríamos de tratar de algumas circunstâncias que envolvem esse assunto.

A questão da remuneração dos militares federais na reserva e dos reformados, bem como das pensões, é percebida a partir de conceitos, de entendimentos e de uma suposta racionalidade que não se amparam na legislação vigente nem na realidade. O que se observa quanto a essa discussão, na maioria das vezes, é um verdadeiro exercício de ficção e de total desconhecimento do assunto, que se tornam evidentes até mesmo no emprego de conceitos básicos. Assim, com muita frequência, constata-se a referência ao regime previdenciário dos militares. Ora, os militares federais nunca tiveram e não têm regime previdenciário estatuído, seja em nível constitucional, seja no da legislação ordinária.

Essa é uma característica é histórica no Brasil.

O art. 142 da Constituição Federal, no § 3º, inciso X, estabelece. Literalmente. que: "A lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, consideradas as peculiaridades de suas atividades”.

O que significa isso? Significa que as condições de transferência do militar para a inatividade, inclusive seus vencimentos, são estabelecidas a partir das peculiaridades das atividades do militar. Peculiaridades essas, que não são consideradas, portanto, apenas para efeito de remuneração na ativa e de contrato de trabalho, mas se estendem às demais relações de trabalho do militar. Esta perspectiva é histórica, mais que centenária, na legislação brasileira.

As condições de transferência do militar para a inatividade e de percepção de pensões estão estabelecidas no Estatuto dos Militares (Lei n.º 6.880, de 1980), na Lei de Remuneração dos Militares (Medida Provisória n.º 2.215-10, de 2001) e na Lei de Pensões (Lei nº 3.765, de 1960).

Em todos esses diplomas legais e na própria Constituição Federal, como já foi dito, nunca houve e não há qualquer referência a sistema ou a regime previdenciário dos militares federais.

Portanto, não há regime previdenciário dos militares e, logicamente, não há o que referir a equilíbrio atuarial do regime previdenciário dos militares federais, porque ele não existe, e por essa razão, quase que ontológica, porque não existe, não pode ser predicado e, consequentemente, não pode ser contributivo, nem de repartição. A remuneração dos militares na inatividade, dos reformados e os da reserva, é total e integralmente custeada pelo Tesouro Nacional.

Enfatizo, os militares não contribuem para “garantir a reposição de renda” quando não mais puderem trabalhar. Essa garantia é totalmente sustentada pelo Estado.

Os militares federais contribuem, sim, com 7,5% da sua remuneração bruta, para constituir pensões, que são legadas aos seus dependentes, e com 3,5% também da remuneração bruta, para fundos de saúde.

Cabe ressaltar que as origens da pensão militar no Brasil remontam ao século XVIII, quando criado o Plano de Montepio Militar dos Oficiais do Corpo da Marinha, em 23 de setembro de 1795.

Este documento foi o primeiro ensaio no sentido de assegurar à família do militar falecido assistência condigna e compatível com o ambiente social em que vivia.

Portanto, o advento da pensão militar tem uma historicidade que antecede mesmo ao movimento previdenciário no Brasil, cuja origem é atribuída à Lei Eloy Chaves, de 1923.

O desenvolvimento histórico da legislação brasileira sobre pensões militares reforça sempre o sentido da constituição de um patrimônio que, após a morte do militar, será legado aos seus dependentes. É por isso que o militar contribui, durante toda a sua vida profissional e na inatividade, até a sua morte, para formar esse patrimônio.

É necessário entender esses fundamentos que têm sustentado, historicamente, no Brasil, a instituição de pensão militar.

Não se trata de um sistema de repartição em que um universo de contribuintes sustenta um universo de beneficiários. Essa visão é extemporânea à gênese da instituição da pensão e pode provocar decisões equivocadas e danosas.

Inúmeros cálculos já realizados indicam que, com uma remuneração anual de 6%, os recursos arrecadados com essas contribuições atendem à despesa com a pensão do militar por toda a vida do seu cônjuge e dos seus filhos e, se considerarmos os descontos de 7,5% sobre a remuneração bruta, procedimento em vigor a partir de dezembro de 2000, o capital acumulado suporta por tempo infinito o pagamento das pensões dos herdeiros do militar.

Outro aspecto que precisa ser esclarecido diz respeito a, aproximadamente, 40.000 pensões especiais decorrentes de múltiplos diplomas legais e que não se referem a militares nem têm a contrapartida de uma contribuição que as sustentem. No entanto, as despesas com essas pensões especiais são computadas à conta das pensões militares e correspondem a quase 34% desse total.
Tem sido também difundida pela mídia “a questão das filhas dos militares” que recebem, por toda a vida, pensões.

Desde 29 de dezembro de 2000, não existe mais esse direito, que era também centenário. Todos os cidadãos que ingressaram nas Forças Armadas, a partir daquela data não foram mais amparados pela antiga disposição legal.
Estabeleceu-se, então, uma regra de transição para aqueles que, naquela data, já fossem militares. Por essa regra, todos os que desejassem manter esse direito deveriam descontar 1,5% dos seus vencimentos brutos. Pois bem, segundo cálculos estimativos realizados pelo Ministério da Previdência e pelo Ministério do Planejamento, os recursos arrecadados, anualmente, seriam cerca de 170 milhões de reais e permitiriam superávit até o ano de 2017.

Cálculos mais precisos, porque baseados em dados decorrentes dos anos 2001 e 2002, portanto, reais, permitem afirmar que, provavelmente, esse sistema será superavitário até o ano de 2036, quando se inicia o período de sua extinção, em decorrência de a população do sistema atual atingir o limite previsível de sobrevida.

Portanto, a intervenção nesse processo ocasionará a interrupção de um fluxo de receita anual de cerca de 120 milhões de reais, a devolução dos recursos já arrecadados e, com grande probabilidade, inúmeras demandas judiciais, que certamente, decorreriam dessa medida.

Gostaria, também, de destacar as recentes modificações que foram introduzidas, por intermédio da Medida Provisória nº 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, na legislação que ampara a remuneração e as pensões dos militares. Há menos de dois anos, significativas alterações foram realizadas, abolindo direitos e estabelecendo regras de transição que estão vigendo.
Essas recentes alterações se referem:

  • ao aumento do valor da contribuição destinada à constituição de pensões de 1,5% para 7,5% da remuneração bruta;

  • à extinção do direito à remuneração de um posto acima, na ocasião em que o militar ingressar na inatividade;

  • à extinção do direito de contribuição para a pensão militar correspondente a um posto acima do militar;

  • à impossibilidade de contar em dobro o tempo correspondente à licença especial não gozada, para fins de passagem para a inatividade; e

  • à extinção do direito de habilitação da filha do militar à pensão vitalícia.

Portanto, importantes alterações, há pouco mais de um ano, já foram realizadas e regras de transição, acordadas por todas as partes interessadas no assunto, foram estabelecidas. Creio não ser prudente interferir nesse processo, o que poderá causar inquietação e transtornos.

Essa discussão sobre a condição dos militares no que se refere à inatividade e às pensões não pode deixar de considerar alguns outros aspectos, de maior amplitude.

Os militares das Forças Armadas têm, historicamente, uma remuneração modesta se levarmos em conta as peculiaridades de sua profissão, peculiaridades essas que afetam fortemente, como já vimos, sua vida familiar, a educação de seus filhos e os impedem de constituir patrimônio, que lhes permita viver, com certa dignidade, a sua velhice. Os salários mais altos dos mais graduados oficiais generais das Forças Armadas são de cerca de 6 mil reais líquidos, após mais 45 anos de serviço e de terem atingido, em média, 65 anos de idade. São pouquíssimos esses oficiais, cerca de dezesseis no Exército, oito na Marinha e nove na Aeronáutica.

Dentre todos os que iniciam, anualmente, a vida militar apenas quatro ou cinco atingem esse nível.

O Brasil, por suas dimensões continentais, pela complexidade de sua sociedade, pelas imensas riquezas que possui não pode, de modo algum, abrir mão de uma estrutura que esteja voltada, em última instância, para defender sua soberania e identidade.

O mundo em que vivemos, no panorama internacional é de grande incerteza, em que os interesses, nacionais, rapidamente, ora se ajustam, ora se contrapõem.

Nossas amplas dimensões geográficas, de enormes vazios demográficos, a nossa extensa costa marítima e o nosso espaço aéreo exigem, obrigatoriamente, que o Estado brasileiro dispense recursos e atenção compatíveis com a magnitude dessas questões, que se relacionam à sobrevivência nacional.

No que se refere às Forças Armadas brasileiras, mais importante que seu próprio equipamento são seus recursos humanos que devem estar permanentemente prontos a atender a uma emergência, que pode surgir inesperadamente. Essa condição exige homens capacitados, educados e treinados, motivados e em condições psicológicas de cumprirem os mandamentos constitucionais, com eficiência, e as determinações do Comandante Supremo das Forças Armadas, o Sr. Presidente da República.

Portanto, a abordagem deste delicado tema não pode estar dissociada dessas considerações mais gerais e fundamentais, que envolvem o próprio Estado brasileiro, sua permanência e evolução.

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